Dá para ver que os dois rapazes e a garota estão acostumados a fazer isto: abrem a porta, desativam o alarme e espalham-se pela casa com eficiência, recolhendo rapidamente tudo o que há de valor – mas sem ultrapassar o equivalente a 10 000 dólares, o que agravaria muito a a pena em caso de flagrante. Tanta prática, porém, gera confiança em demasia. Quando ficam sabendo de uma casa em ruínas em um bairro abandonado de Detroit, na qual mora um sujeito que anos antes recebera uma indenização polpuda pela morte de sua filha num atropelamento, Alex (Dylan Minnette), Rocky (Jane Levy) e Money (Daniel Zovatto) julgam que o furto vai ser sopa no mel: o morador (Stephen Lang) é cego. Mas faltou investigá-lo mais a fundo. Ele é cego, sim. Mas também é ex-fuzileiro naval, é malvado até dizer chega, é ciumento do seu dinheiro (e de algo mais que esconde no seu porão) e, de quebra, tem um cão feroz. O plano do trio começa a dar errado já no primeiro passo – e segue despencando ladeira abaixo, com desdobramentos arrepiantes. Até o ato final, quando o roteiro perde a linha (para então recuperá-la, em um desfecho perverso), o diretor uruguaio Fede Alvarez, da refilmagem A Morte do Demônio, mostra a sua perícia no manejo desta história concentrada em quatro personagens, em uma única locação.
Chef
Onde: Amazon, Looke, NOW
Grande e bravo como um urso, Carl Casper (Jon Favreau) se descontrola de vez durante a segunda visita a seu restaurante de um certo blogueiro de gastronomia (o inimitável Oliver Platt): da primeira vez, Carl apanhou feio no blog pela falta de imaginação, revidou pelo Twitter, criou uma formidável briga viral, chamou o crítico para a revanche – e acabou expulso da própria cozinha. Agora, enquanto o crítico olha o menu e tuíta que Carl arregou, o próprio vem babando ao restaurante. A sommelière (Scarlett Johansson) tenta segurá-lo, mas não adianta: dezenas de celulares filmam a crise. Antes um chef estrelado, ele agora é um desempregado. A saída? Cair na estrada, de Miami a Los Angeles, em um velho caminhão de lanches, na companhia do filho de 10 anos (o ótimo Emjay Anthony) e de um festivo ajudante de cozinha (John Leguizamo). No cardápio, queijo derretendo dentro de pão tostado com muita manteiga, pernil bem assado e desfiado, churrasco abafado durante toda a noite, mandioca frita. Um sonho. Em Chef, é essa a verdadeira gastronomia: a que preenche, reconforta e une. Diretor dos dois primeiros Homem de Ferro e de Mogli, amigo de meio mundo, dialoguista inspirado e um ator frequentemente subestimado, mas com um dom para a exasperação, Jon Favreau volta a ser, com Chef, o cineasta independente que estourou com o pequeno Swingers em 1996. E, pelo jeito, é nesse food truck baratinho que ele é mais feliz.
Três Reis
Onde: Netflix
É 1991, fim da Guerra do Golfo: americanos e iraquianos assinam seu acordo de paz e os soldados celebram como se estivessem numa festa de colegial, com cerveja e gritaria. Afinal, a maioria deles só viu o conflito da mesma maneira que os espectadores dos telejornais – pela televisão, sem nem saber onde cairiam os mísseis que disparavam. Nesse clima de fim de feira, quatro soldados fazem uma descoberta intrigante: um mapa que pode levar a casamatas recheadas de ouro, roubado por Saddam Hussein aos kuwaitianos. Instigados por um superior (interpretado por George Clooney), Mark Whalberg, Ice Cube & cia. acreditam que a tarefa é simples. Numa manhã, podem escapar sem ser vistos, recolher o tesouro e voltar ao acampamento. Nada, é lógico, vai transcorrer como o planejado. Misto de aventura, drama e humor negro, Três Reis não raro, atinge a estatura de M.A.S.H., o clássico do cinismo que o diretor Robert Altman ambientou na Guerra da Coreia. O diretor David O. Russell, que aqui estava em começo de carreira e depois faria O Lado Bom da Vida e Trapaça, usa uma película lavada para criar um efeito de cinedocumentário, e dá a mesma atenção ao desempenho dos atores que aos malabarismos visuais. Um filme de poucos tiros, mas no qual cada um deles conta.
No Portal da Eternidade
Onde: Amazon, NOW
Entre cético e penalizado, o padre (Mads Mikkelsen) discute com o paciente do manicômio: ele então seriamente crê que a pintura foi o dom que Deus lhe deu, quando são tão feios e desagradáveis os quadros que pinta? Vincent Van Gogh (Willem Dafoe) tenta explicar que tudo, no que ele cria, é a beleza do mundo – materializada na tela sem interpretações nem distorções, e entregue a ele em estado puro e primordial. O padre desiste; não há o que fazer. Mas é Van Gogh, verdadeiramente, quem capitula. Em meses, estará morto – aos 37 anos, de aparente suicídio. Como nenhum outro, o pintor holandês (1853-1890) personifica a figura do artista incompreendido, que não vendeu nenhuma tela em vida e hoje tem valor incalculável. E nenhum outro é também tão emblemático da convergência entre genialidade e loucura. Na atuação quase sublime de Willem Dafoe, porém, é de fato a beleza que enlouquece Van Gogh e o fere – ela e o fardo de eternizar o que é efêmero, e de expressar o que os outros ainda não enxergam. Dirigido pelo cineasta e artista plástico Julian Schnabel, No Portal da Eternidade poderia se beneficiar de uma câmera menos tremida. No seu propósito, porém, o filme é de uma firmeza inabalável: o de fazer o espectador viver, por duas horas que seja, o transe eletrizante, mas desorientador, que é experimentar o mundo assim, sem mediação nem proteção.
Réquiem para um Sonho
Onde: Netflix
Sara Goldfarb é viúva, idosa e o último dia feliz de que se lembra na vida é o da formatura do colegial do seu filho, Harry – quando o marido estava vivo, o filho não lhe roubava o televisor todas as semanas para comprar drogas e, especialmente, quando ela ainda cabia num certo vestido vermelho. Um telefonema de uma emissora de televisão – “Você foi escolhida para aparecer no nosso programa!” – faz Sara acreditar que ela pode regressar a esse dia. Se conseguir entrar no vestido, vai cobrir-se de glória diante das câmaras. Para vencer os quilos que a separam dessa felicidade, Sara recorre a um médico, que a entope de pílulas. Ela nem sabe que está tomando drogas, muito menos imagina que se tornou uma viciada. Mas sua descida ao inferno é aniquiladora. É, talvez, o mais horrível dos quatro pesadelos que compõem o filme do diretor Darren Aronofsky, que trata de um encontro funesto: aquele entre pessoas infelizes e as drogas. Também para a plateia essa será uma viagem de agonia: Réquiem duplica na cabeça do espectador as sensações experimentadas pelos quatro protagonistas, todos dependentes de drogas pesadas. Quer queira, quer não, ele é obrigado a subir com eles ao auge da euforia e depois descer à depressão mais densa, até que só sobre a degradação. Aronofsky se vale de toda espécie de virtuosismo visual para recriar esse horror, e também de seus atores – Ellen Burstyn, Jared Leto, Jennifer Connelly e Marlon Wayans – ele exige o máximo e mais um tanto.
Vidro
Onde: NOW
Quando o escritor F. Scott Fitzgerald disse que “não existem segundos atos na vida americana”, é porque não adivinhara o poder de regeneração de Hollywood – onde atores caídos em desgraça ressurgem como ídolos, e cineastas dados por arruinados, como M. Night Shyamalan, renascem para o favor popular. Verdade seja dita, o diretor de O Sexto Sentido topou uma reformatação radical: de realizador bem financiado, passou ao time de Jason Blum, o produtor ultra-ágil que manda hoje no terror e já garimpou 3 bilhões de dólares desse filão. Para A Visita, de 2015, Blum deu a Shyamalan 5 milhões de dólares (um troco de padaria) e arrecadou quase 100 milhões na bilheteria. Para a segunda parceria, Fragmentado, de 2017, destinou-lhe 9 milhões, mas colheu mais de trinta vezes a quantia. Agora, com Vidro, o diretor e o produtor dobraram as apostas: rodado por 20 milhões, o filme surfa na história e no sucesso de Fragmentado, e busca fãs antigos atando o novo enredo ao de Corpo Fechado, de 2000. David Dunn (Bruce Willis), o sujeito indestrutível daquele filme, agora caça Kevin Crumb (James McAvoy) e seus 22 alter egos antes que eles repitam o massacre que perpetraram em Fragmentado. Caem ambos (ou todos) na armadilha de uma psiquiatra (Sarah Paulson) especializada em gente com síndrome de super-herói – e se descobrem na companhia do Sr. Vidro (Samuel L. Jackson), autor dos horrores de Corpo Fechado. Shyamalan costuma descambar para o salseiro no terço final de seus filmes, depois de sua habitual reviravolta. Mas aqui segura as pontas até o desfecho, e ainda deleita a plateia com algumas tiradas muito perspicazes sobre a obsessão dela com os quadrinhos e os super-heróis.
Capitão Fantástico
Onde: Netflix
Sob um céu de estrelas, com os seis filhos reunidos em volta da fogueira, Ben Cash controla as atividades da prole. Quer saber em que capítulo do clássico Middlemarch está a filha pequena, inquire uma das mais velhas sobre o conceito de tempo na física quântica. É hora então de relaxar com um pouco de música. Que os próprios Cash vão tocar, assim como fazem sozinhos todo o resto – caçar os animais e plantar os vegetais que comem, cortar a lenha, costurar as roupas e usar a cabeça: não há momento do dia em que Ben, interpretado com riqueza excepcional por Viggo Mortensen, não trabalhe para tornar as crianças independentes em corpo, espírito e intelecto. A mãe dessa criançada singular, porém, não resistiu. Com problemas mentais, ela acabou de se suicidar numa clínica. Ben quer levar os filhos ao funeral. O sogro (Frank Langella, excelente) diz que vai mandar prendê-lo se ele der as caras por lá. É a senha de que Ben precisa para botar todo mundo no seu ônibus colorido e fazer um breve ingresso na civilização, onde sua sensatez às vezes será confirmada, outras vezes negada. O filho mais velho (George MacKay, outro destaque) sente as deficiências sociais do programa paterno. Por outro lado, os pequenos brilham no contraste com os priminhos entediados e frívolos – e, na primeira parada na estrada, espantam-se: as pessoas estão doentes? Por que são tão gordas? Escrito e dirigido pelo ótimo ator Matt Ross (de Big Love e Silicon Valley), Capitão Fantástico mergulha nos dilemas da criação dos filhos: a medida certa de ajuste e de peculiaridade, o balanço entre controle e independência. Uma certeza, contudo, o filme deixa: se os filhos pertencem ao mundo, e não aos pais, é imprescindível que tenham alguma ambição sobre o mundo a que pretendem pertencer.
A Mula
Onde: Looke
Earl Stone tem 90 anos, mas continua com a cabeça da juventude: adora paquerar, é bom de copo, canta junto com o rádio do carro, não perde uma piada nem um baile de polca na Associação dos Veteranos (ele lutou na Guerra da Coreia, que acabou em 1953). E Earl nunca deixou também de ser inconstante e inconsequente. A família ficou pelo caminho, mas volta e meia ganha uma nova chance de se decepcionar – a mais recente é a notícia de que ele não vai ajudar a custear o casamento da neta, porque sua plantação de flores foi à falência. Tudo que Earl tem no mundo, agora, cabe na traseira de sua caminhonete velha. Eis, porém, que ele aparece com um maço de dinheiro. E outro, e mais outro. Earl encontrou um novo meio de vida: transporta drogas para um cartel mexicano entre o Texas e Illinois, um estirão de mais de 2 000 quilômetros. Vai protegido pela aparência inocente dos muito idosos, pelo histórico impecável – nunca tomou uma multa – e pela crença na sua invencibilidade. Dirigindo a si mesmo pela primeira vez desde Gran Torino, de 2008, Clint Eastwood, de respeitabilíssimos 88 anos, lida aqui com um personagem preso à ilusão de que a existência é mais leve quanto menos vínculos tiver. Esses laços, é evidente, começarão a fazer falta a Earl Stone. Mas, ainda assim, Eastwood sublinha durante todo o filme a ideia de que a velhice não exclui prazer, jovialidade, desejo de aventura nem a trepidação do novo. (Com alguma pilantragem, também, ele se aproveita da cobertura da idade para ser o mais politicamente incorreto possível.) Partindo de um realizador cuja curiosidade pelo mundo não se abate e cuja resistência física é notável, trata-se de um testemunho e um testamento.